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Antes do Crepúsculo: Oh Flor do Céu!

  • Foto do escritor: João Rosa de Castro
    João Rosa de Castro
  • 8 de abr.
  • 5 min de leitura

Naquela tarde, de 13 de julho de 1994, o telefone tocou na mesa de Ernesto, analista de suporte na Casa do Cônsul, empresa incipiente na área de TI para hotéis.

Ele, que falava com Odair, franziu a testa e atendeu. Era Áurea, gerente do hotel Paradiso, dizendo que estavam com problemas no relatório diário de receita, mostrando dados incorretos.

Ernesto pacientemente tomou os dados necessários e passou-os para Odair. Este era o programador, que coçou a cabeça, pegou do papel na mesa de Ernesto, sentou-se novamente diante do seu microcomputador e pôs-se a (re)programar.

Enquanto isso, no estrela da palavra, o primeiro programa de texto jamais aparecido no Brasil, Ernesto adiantava sua Oficina Teatral. Estivera com uma nova dinâmica para levar no fim de semana para o grupo. A dinâmica maluca dizia respeito a usarem os atores “orientados” vendas nos olhos enquanto um ator de cada par orientava o caminho do outro pelo parque ecológico.

Já era multifocal ao trabalhar para uma empresa de TI e deixar de se inteirar das questões mais profundas da área no afã de dramatizar nos palcos.

E via mesmo um paradoxo naquela tal multifocalidade: ou seria um perito em todos os enfoques ou um profissional meia boca em todos eles. Para a segunda hipótese, bastava que fosse desendinheirado, como era; para a primeira, carecia de grana. Muita.

Comera bife à parmegiana em casa. Aquela mulher descera do hospital e ele subira do escritório. Tédio. Não tinham filhos e ele pouco se importava. Tratavam de amenidades. Futilidades de um casal que não nascera para o ser. Ele teria querido estabelecer uma república com o grupo de teatro. Mas ela, e a mãe, afunilaram a relação dos dois para “aquilo” que chamavam casamento.

É que ela era desequilibrada. A mãe não suportava mais sua agressividade e suas alucinações. Encontrou no nosso herói um cavalheiro, e um cavaleiro, que, se dissesse não para tudo o mais, jamais diria não a uma mulher. E a sogra queria arranjar o destino da filha…

Odair fez sinal com o disquete pronto. Ernesto foi até sua mesa. Odair mostrou os comandos a serem inseridos no servidor do hotel. Ernesto tomou um café, fumou um cigarro rindo um pouco com Odair. Partiu para o campo.

Subiu a ladeira depressa. Ou terá descido? O ônibus já apontava. Entrou. Sentou nos fundos. Sentia falta dos pais e dos irmãos do outro lado da cidade. Como estariam? Tinha telefonado para a mãe havia uma semana. Precisava ir visitá-los. A mãe dissera que estavam todos bem. Mas, afinal — raciocinava —com que intuito diria o contrário?

A Avenida Pompeia parecia longa. E ainda tinha a Heitor, e ainda a Dr. Arnaldo e a Paulista inteira. Credo. Estava cansado daquilo. Mas não queria um carro. Tinha cogitado comprar uma motocicleta. Estava negociando com a empresa se faria sentido. Tinha surtos de claustrofobia dentro dos carros e dos ônibus. Mas, já indicara o chefe chato: “moto é perigoso”.

Ernesto tinha lido no jornal uma pesquisa que fizeram sobre a estética arquitetônica de grandes cidades do mundo. São Paulo, assim como Caracas e Chicago, entravam para as vinte cidades mais feias do mundo. Estava inquieto.

Na verdade, ele omitia que queria que o Brasil ganhasse aquele jogo. Mas a Áurea devia ser daquelas mulheres que se sentiam reprimidas pelos maridos que as trocavam por futebol. Precisava telefonar justamente antes da hora do jogo? Só para pôr uma pessoa em trânsito durante a partida? A Suécia queria ser a queridinha da américa. Mas Ernesto desafiava: só se o Brasil perder esse jogo.

Quando o ônibus entrou na Heitor Penteado, alguma coisa aconteceu no coração de Ernesto. E ele logo chacoalhou a cabeça, asseverando que não acontecia nada em seu coração em nenhuma esquina da cidade. Salvo por gases que com flatulências se resolviam. Mas é uma pretensão dizer que as pessoas só têm flatos na Ipiranga com a São João ou na Pompeia com a Heitor Penteado. Ou em esquinas alhures.

Na Pompeia eram as ladeiras, ali na Heitor eram as curvas que mexiam com o espírito de Ernesto. Foi seguindo e pensando, no pai. Por que será que seu pai era tão reservado, tão categórico e monossilábico? Ficava tentando lembrar algo que o velho houvesse dito ou feito de deslumbrante — além de haver gerado a ele e a seus irmãos — e não lhe o ocorria. Mas era um gênio. Apesar de que parecia desnecessário o velho. Quieto e sério!

Ainda: o velho dava resistência à mãe. E o Ernesto se reconfortou com essa palavra que o pai dava à mãe. RESISTÊNCIA! Ernesto nunca tinha presenciado nada de sensual — sequer um beijo — entre os pais.

Mas daí ele ouviu o cobrador falando com uma passageira sobre a “muvuca” que estava a avenida Paulista. “Lotadérrima!” — diziam. E seu coração palpitou. Não sabia por onde chegaria ao Paraíso. Talvez o ônibus seguisse pela alameda Santos. Não gostava de perguntar. Fazia pouco mais de três meses que mudara para lá. Presumiu que seria assim.

O tráfego a partir da Dr. Arnaldo já estava infernal. Apenas depois do portal do cemitério é que foi possível avançar. O ônibus entrou na alameda Santos e foi parando pelos faróis, gente gritando pelos carros: Brasil, Brasil, Brasil.

Ernesto ficou eufórico. Chegado próximo ao centro comercial descobriu que haviam os mais fanáticos instalado um telão para o povo ver a partida.

Desceu e foi para o hotel, renegando a raiz brasileira do futebol. Até quando? Já não participava do carnaval. Já não participava do futebol. Se fosse mesmo brasileiro, teria marchado depressa para ver o finzinho do jogo.

Porém, parecia que Ernesto era inglês: Time, para ele, era Money. E ele chegou ao Hotel Paradiso, onde Áurea o aguardava sozinha na recepção. De certo que todos os demais estavam numa sala de eventos assistindo o jogo. Ele não achava pouco promíscuo ficar um grupo de pessoas assistindo os homens batalharem pelo gol.

Depois que mecanicamente inseriu os comandos no computador, os problemas da auditoria do hotel estavam praticamente resolvidos. Despediu-se de Áurea e voltou para a avenida que já gritava a vitória da seleção.

Não por que fosse apaixonado por futebol, mas por questões de cultura e politicagem, Ernesto fazia questão daquela vitória. Afinal, se o Brasil não fosse o país do carnaval ou do futebol, seria o país do quê? Contentava-se com o placar dos jogos.

As pessoas estavam atônitas àquela hora da noite, queriam mesmo era festejar aquele gol fatídico. Carros passavam buzinando com suas bandeiras e seus gritos.

Agora nosso homem seguia para a alameda Jaú, de onde presumia que o ônibus o levaria de volta às Perdizes.

Passou pela praça Osvaldo Cruz, entrou na rua Rafael de Barros, os carros passavam velozes e ele foi descendo num misto de desprezo e satisfação.

Logo que atravessava de volta, na esquina com a Alameda Santos, um Toyota Rav-4, carregado de mulheres gritando para fora das janelas e do teto solar e um torcedor dirigindo bêbado em altíssima velocidade atingiram Ernesto em cheio e mataram-no naquele mesmo instante em que ele passou a ver só a escuridão e a ouvir nada mais do que o silêncio.


In: CASTRO, João Rosa de. Antes do Crepúsculo. 2 ed. São Paulo: Autopublicação. Disponível em <www.pedradetoque.com.br>.

 
 
 

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