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Santa Maria d'Oeste: Platão e as Mulheres

Nada como dormir e sonhar, e melhor ainda quando podemos sonhar e acordar para poder contar o sonho. Sabe, Maria Santa, eu tinha começado a redigir para você uma justificação para o fato de eu ter desistido da pós-graduação. Por sorte o telefone tocou logo no começo do texto. Era Guilherme, que, ao saber que eu estava escrevendo, reclamou que “eu só penso em escrever…” Ainda bem que nesse telefonema ficamos horas conversando e eu adiei a escrita do tal texto! Era um esboçozinho que ia dar mais trabalho para redigir do que o texto mesmo que decidi escrever agora. Era uma série de motivos clandestinos, que não justificavam ninguém, antes me tornariam ainda mais censurável.

Agora, porém, sonhei que Amália desafiava minha sobrinha, Lígia, ainda menina, dizendo a ela que “quando fosse mulher, ela ia saber criar os filhos, para depois não ter um marido covarde que quisesse se suicidar”. Ela dizia isso porque meu pai, no sonho, dissera que não aguentava mais a vida e que queria se matar.

Pois bem, a partir da avaliação do conteúdo do sonho percebi algo que é comum na nossa cultura e tive uma percepção que pode explicar porque um homem como eu pode desistir tão fácil mesmo do que foi tão difícil conquistar.

A menina é tratada para o futuro, para alguma coisa que só vai acontecer depois que ela provar que se tornou mulher. E tornar-se mulher envolve uma série de ações (e omissões!) da parte dela, transformando sua vida num verdadeiro inferno — o que dificilmente se daria com um menino.

A menina ganha uma boneca — quando crescer precisará ser mãe. O menino ganha um carrinho —  quando crescer precisará estar em movimento. É claro que hoje temos o videogame, mas dificilmente uma criança de um ano seria capaz de aproveitar o brinquedo eletrônico. Básica ou tradicionalmente, o menino se diverte mesmo é com o carrinho, e a menina com a boneca. Que diferença gritante, Santa Maria! Pois a partir disso pode-se perceber como é mais fácil para o menino fazer a mimese do brinquedo na vida. Estar em movimento? Ah, isso é fácil: é só andar, correr, saltar ou dançar que ele já pode realizar agora mesmo o que a menina só pode fazer “quando for mulher”, isto é, ser mãe, poder cuidar de um outro ser que dependa inteiramente dela. Imagino que na cabeça da menina sempre haja algo como um adiamento, uma noção de procrastinação, uma vontade de burlar o destino. Tudo isso permite que a razão da menina apareça muito cedo comparada à do menino. Para o menino não existe depois. A qualquer tempo, ele já é um advogado, já é um médico, já é um mestre, um doutor, um livre-docente. Não precisa provar, a exemplo da menina, que se tornou qualquer coisa, pois ele não se torna nada mesmo, ele sempre é tudo o que imagina. Porque a menina depende do homem para se tornar mulher e o menino não precisa se tornar homem (isso não existe!), ele só precisa ajudar a menina a se tornar mulher. Para isso ele não depende nem mesmo do sêmen — mas tão só da ereção. E sabemos que a ereção é um fenômeno que surge muito cedo no corpo do menino homem, assim como infelizmente desaparece depois, na velhice, em relação à libido e/ou o desejo da mulher.

E a academia, com seus processos de tornar-se isso, tornar-se aquilo, parece querer imitar as dificuldades e adversidades encontradas no corpo da mulher. Eu não sou um leitor de Platão, mas imagino que sua academia devia estabelecer uma hierarquia para os homens (se é que ela é imitada pelas academias de hoje), que na natureza só poderia existir no corpo da mulher. Assim, para o homem, tornar-se alguma coisa é algo que só pode ser percebido com a ajuda do intelecto. Como a mulher já está acostumada com as transformações do corpo, tornar-se alguma coisa na vida intelectual é apenas um adendo.

Esses seres brutalizados, como eu, não podem ser tratados como um corpo feminino, que ainda vai se tornar alguma coisa. É por isso que abandonei o curso. Quer dizer, pelo menos é esta justificativa que me ocorre neste momento. Tenho consciência de que não vou me tornar nada, a despeito de qualquer título honorífico. Só existe uma coisa que o homem cada vez mais precisa se tornar, que é tornar-se pai, mas nesse caso ele também depende da mulher, por isso é uma coisa rara. Mesmo assim, ser pai é apenas um estado de espírito, ao passo que ser mãe é um fato.


In: CASTRO, João Rosa de. Santa Maria d’Oeste. São Paulo: Scortecci, 2018. Disponível em <www.pedradetoque.com>.


 

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