No trato com pessoas, cumpre sermos bons e amarmos. A primeira atitude esperada das pessoas “boas” e “amáveis” é talvez o elogio. Diz-se que o professor olha o desenho canhestro da criança e mesmo assim diz: “que lindo!”. Sim. Quiçá para ela o desenho está perfeito mesmo! E o professor não poderá distorcer as impressões da criança.
Salvo quando ela cresce, e, já homem feito, atinge a posição de cientista em qualquer curso superior. Na ciência, o erro se condena por todos, mas o acerto “não é mais do que a obrigação”.
No Candomblé, porém, todos se elogiam e todos se censuram indistintamente por meio dos afetos, dos ciúmes, da angústia, da raiva, etc. Enfim, todos se amam e se odeiam como a vida deve ser, num exemplo de liberdade sentimental que é crítica fora da roça.
Era disso que eu estava sentindo falta: vida, gente se insultando e depois esquecendo, porque o rancor não “pega” na gente de axé.
Se algumas religiões de elite asseveram que não estão aqui para atender expectativas, mas para celebrar mistérios, num tempo circular que eu nunca tinha visto ou vivido, no Candomblé, isto não é muito diferente. A diferença é que celebramos mistérios (ou mitos) fazendo festa, e não chorando.
Fiquei surpreso com a organização das festividades no tempo circular, nas quais, a cada ano ou período, fica-se a expectativa de que algo maior e maior acontecerá. E não é que acontece! A organização da Ialorixá depende não só de sua sintonia com o tempo, mas também do senso de criação e recriação, pelo qual, em um período de tempo, determinada festividade ocorrerá de uma maneira, no período seguinte será diferente e trará muitas impressões nunca vistas naquela casa ou em nenhum lugar. Isto sem deixar descurada a estrutura dos mitos e das divindades que lhe correspondam.
Quando recebi o calendário deste ano e percebi o uso do tempo, pensei num filósofo que, mesmo tendo vivido há mais de cem anos, me orienta em quase tudo o que faço ou leio ou escrevo. Fiquei surpreso com que “o eterno retorno” (o filósofo é Nietzsche), uma das quatro ou cinco teorias dele que eu não compreendia, pode ser o retorno do tempo circular que se repete nas celebrações da vida. É o tempo mítico, tempo do sobrenatural (porque o tempo está sempre começando, está sempre no início da divina criação). Isto eu encontrei e vivi na pele no Candomblé: por Olodumare, Oxalufã, Oxum, em meus pais falecidos, etc.
Sem falar no entrosamento com o pessoal do Axé, de maneira descontraída (e às vezes séria também), nas situações simples de lavar louça, cozinhar um feijão na panela de pressão e ficar com medo de que ela exploda. Afetos envolvendo todo tipo de sensações, ao mesmo tempo que me vejo humilhado, de repente, abrem uma exceção para mim; às vezes me sinto o bambambã, vem outra pessoa e diz que não posso agir de um jeito ou de outro. Daí eu digo: “se não sou iniciado ainda, não renasci ainda, logo sou uma alma penada!”. “Não! Nada disso. Aí você pegou pesado”. Mas é que estou sempre preparado para a dureza. Abiã também sofre. Abiã também tem coração!
Por último, fica a dúvida: Mãe Thaís de Oxum dizia de uma feita que tinha “três” abiãs. “Fulano, sicrano e beltrano”. Eu, entrão, me convidei para lhe ser um abiã dedicado, e ela ficou em silêncio. Isto significa que no Ilê de Airá eu não sou nem abiã? Ou ela já estava dando por certo que “além de mim… havia três…”? Ou eu não seria nem mesmo uma alma penada e estaria mais atrasado espiritualmente de que uma? Ou…?
Por fim, estão escritas, a seguir, minhas memórias registradas no período de um ano, conforme o título do livro indica. Espero que minha gente, de qualquer religião ou área do conhecimento, sinta-se engajada na desdemonização das religiões de matriz africana e, por que não, tome também o livro como uma forma de entretenimento.
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R$ 40,00Preço
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